1998 - 3352.
"O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel."
— Platão.
No estudo da creação, há necessidade, inicialmente, de ser considerada a creação dos espíritos, e, paralelamente, a creação das coisas que compõem o mundo. Assim é que, desde a época védica, teoricamente, foram consideradas duas origens, às quais foram dadas, respectivamente, os nomes de Purusha e Prakriti. Em palestras futuras, detalharemos como, basicamente, se processa a creação, tendo‑se em conta estas duas origens. No momento, iniciaremos estudando algumas condições inerentes à natureza do espírito.
Houve um período de nossa história em que os pensadores religiosos se preocuparam demais com a natureza dos anjos. Isto chegou ao máximo em Bizâncio, onde os filósofos religiosos discutiam sobre o sexo dos anjos, quantos anjos cabiam na cabeça de um alfinete, e coisas assim. Discussões que não levavam a coisa alguma, e disto nasceu o termo “discussão bizantina” – discussão sobre coisas de somenos importância.
Não queremos nesta palestra enveredar numa discussão bizantina, ao salientar algumas particularidades da natureza do espírito, porque, somente tendo-se alguma idéia do que na realidade ele seja, é que se pode melhor compreender inúmeras coisas inerentes às religiões e à evolução.
Todas as religiões afirmam que Deus criou os anjos e os espíritos. Então vejamos um mínimo daquilo que pode representar um espírito, a fim de podermos ter uma idéia mais precisa sobre a natureza deles.
Basicamente, três qualidades são fundamentais para que se possa dizer que algo é um espírito: O Querer, a Consciência do Eu, e um quanto de Energia.
1ª – O QUERER:
O Querer, base essencial do Livre Arbítrio, é fundamental para que seja caracterizada uma entidade, uma individualidade. O espírito tem que ser uma individualidade, uma unidade tanto ou quanto personalizada. Se assim não for, como conceber um indivíduo destituído do querer? Suponhamos uma pessoa que, ao acordar pela manhã, não fosse o seu querer que a fizesse abrir os olhos e sim o querer de X. Para se levantar, fosse o querer de X, para trocar de roupa, também, para ir ao banheiro e providenciar a higiene pessoal, para centenas de atos voluntários indispensáveis como o locomover-se, o tomar o café da manhã, o sair para o trabalho, pegar uma locomoção, para dirigir o veículo, abrir as portas, chegar ao emprego e durante o dia inteiro praticar um imenso número de atos que são diretamente dependentes de um ato de querer. Suponhamos que tudo isso não ocorresse pelo querer da própria pessoa e sim pelo querer de X. Então cabe a indagação: Tal ser existiria como um indivíduo? – Qual a diferença dele para um autômato? Sem a capacidade de expressar-se, de pensar e de agir própria, como admitir que tratar-se-ia de um ser pessoal? – Por certo o ser seria X, pois era ele quem tudo comandava. Por isso, para ser um espírito, é indispensável o “querer”.
O exercício do querer está diretamente ligado ao Livre Arbítrio. Para que uma pessoa possa exercer o querer, ela tem que ter a liberdade relativa de fazer tudo aquilo que quiser fazer. Sem o querer, há uma anulação total da individualidade pessoal.
2ª – CIÊNCIA DE SI:
É fundamental que o espírito tenha ciência de si mesmo. O “Eu Sou” é inerente à percepção de si. Até o próprio Poder Superior define-se como “EU SOU QUEM SOU”. Isto equivale a dizer eu sei que existo, sei quem eu sou.
Pode-se pensar que a consciência do eu é inerente à vida. Isto não é verdade, porque somente os espíritos que evoluem e algumas outras formas de existência ligadas diretamente à creação são dotados do atributo de ter ciência de si mesmo, de se dar conta de ser quem é.
Onde quer que exista vida, há uma forma espiritual, há um espírito, mas nem sempre se trata de espírito ligado à cadeia evolutiva do tipo humano. Uma célula vegetal, por exemplo, tem vida, e, tendo vida, com certeza tem espírito, porém esse tipo de espírito não evolui como um ser humano, nela não se faz presente o “eu sou” – impropriamente considerado o ter consciência de si – e nem um querer independente. Difere, portanto, de inúmeros animais e do ser humano. Os Rosacruzes têm dois nomes para denominar o elemento impulsionador da vida. Dizem que todas as formas de vida têm energia de espírito, mas nem todas têm alma. Assim eles diferenciam na vida duas coisas: Energia de Espírito e Alma.
Dentro dessa conceituação, podemos dizer que a alma tem individualidade, tem ciência de si, tem um querer próprio, enquanto que as demais formas de vida têm a Energia Vital, que é a energia do Poder Superior, comandada diretamente pelo querer d’Ele. Uma célula tem vida, portanto tem espírito, mas por certo não tem consciência de si, não sabe quem ou o que é. Não pode exercer o querer próprio e nem pode pensar Eu sou eu.
É exatamente a ciência de si que permite o exercício do querer. Não poderia haver livre arbítrio sem a ciência de si. Também temos que admitir que a ciência de si seja tão somente uma parte, um exercício da Consciência Cósmica. A recíproca não é verdadeira, pois há Consciência[1] sem o exercício do querer, mas não há exercício do querer sem ciência.
3ª – A ESTRUTURA:
É fácil sentir a necessidade de mais um terceiro elemento para oferecer o mínimo necessário para a existência de um espírito. Já vimos que, no mínimo, ele deve ter consciência e querer. Mas consciência e querer não são coisas, não existem sozinhos, têm necessidade de algo mais, de um suporte, algo a que possam ser imanentes. Como tudo na natureza só se manifesta pela vibração, não se pode ter dúvidas de que deve existir uma estruturação, uma manifestação vibratória, que sirva de suporte para a consciência e para o querer poder ser exercido.
A consciência não é uma manifestação vibratória, a sua natureza é totalmente diferente de qualquer coisa que exista, seja em qual for o plano. Ela não é uma “coisa”, mas sim um “estado” inerente a alguma “coisa”. Algo que se manifesta em uma estrutura, e o querer é apenas um exercício através de uma estrutura. Por isso não se procure saber qual o nível de vibração da consciência, pois ela não é vibratória.
Uma das mais elevadas Trindades, como vimos na palestra anterior, é formada pelo QUERER + RA + MA – origem de tudo quanto há. O Poder Superior só se manifesta como uma “Trindade”, dentro da Creação, quando a Consciência, através do Querer, faz interagir RA com MA, originando uma vibração, que poderá se manifestar, sob forma de energia ou de matéria. A CONSCIÊNCIA É A ALMA DE DEUS, A CONSCIÊNCIA É O TEMPO, A CONSCIÊNCIA É A ESSÊNCIA DO PODER SUPERIOR, É A GÊNESE DE TUDO QUANTO HÁ.
No mundo creado, a consciência só pode se manifestar de uma forma imanente, ou seja, em alguma coisa, assim ela se apresenta quer em estruturas materiais, quer energéticas. Um espírito não é matéria, logo ele tem que ser energia, e assim podemos dizer que ele é um tanto de energia dotado de consciência e “querer”. Essa consciência, contudo, pode estar ou não individualizada. É individualizada quando há a consciência do eu, quando a partícula é capaz de se dar conta de si como ser. Dizemos isto porque um ser pode ter tão somente a consciência universal, não particularizada como individualidade independente. Cada um de nós é um espírito, mas com individualidade própria, com uma consciência que, embora seja universal, está bem individualizada, a ponto de cada pessoa dizer eu sou eu e tu és tu.
Quando se fala na creação do espírito humano, com certeza pode-se afirmar que isto não diz respeito a uma forma física estruturada, e sim a um tanto de energia primordial dotada de uma individualização da consciência e concomitantemente com um Querer – livre arbítrio. O que se cria é o EU, a individualidade, o “dá-se conta de si”. Portanto o espírito é uma energia com individualidade e consciência de si como forma existencial.
A individualidade se manifesta pelo querer. Sem o querer não pode haver individualidade, como vimos no início. Esta é uma das razões pela qual Deus nunca interfere no querer das pessoas, pois interferir é retirar, é anular o querer, e anulá-lo extingue a individualidade, o que equivale a exterminar o próprio espírito. Destruir um espírito seria destruir o seu Eu e destruir o “querer” é destruir o Eu. Coibir o exercício do livre arbítrio equivale a anular o “querer”, que é o mesmo que destruir a individualidade, ou, em outras palavras, destruir o espírito.
Existem indagações muito frequentes que consistem no se querer saber por que Deus não evita os males dos homens? Por que Deus deixa que se façam certas coisas indesejáveis? Por que Ele, sendo a bondade, permite que os seres façam males uns aos outros? Por que deixou que os anjos houvessem desobedecido e se revoltassem – como consta na Cabala e na Bíblia? A resposta reside em dois motivos principais. Primeiro porque o mal é algo muito relativo. Interpretamos o mal como aquilo que não nos é agradável, embora aquilo considerado como tal possa ser prazeroso para outro ser. Segundo, Ele deixa que os males se manifestem, porque eles são coisas oriundas do querer, ou seja, do exercício do livre arbítrio, e, sendo assim, se Deus os coibisse, então Ele estaria anulando, impedindo o “querer” do espírito, e isto seria ditar a extinção do espírito; seria fazer um espírito ser comandado pelo “querer” que não é o seu próprio, e isto, portanto, acarretaria a anulação da própria individualidade.
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[1] A Consciência existe desde sempre, É Eterna, exprime todas as possibilidades cósmicas de universos. É UNA, porquanto é infinita, de modo que está presente em tudo quanto há, até mesmo nos seres não dotados de ciência de si.