PEREGRINI SANTIAGO
“Nada está errado; nada está certo. Nós simplesmente escolhemos e consideramos o que deve ou não deve ser feito."
— P.
Em outro artigo, abordamos a questão da dupla dimensão de projeção comportamental da pessoa diante da sociedade, quando, nesse contexto, considerada simultaneamente "autora e "narradora". Embora já tenhamos falado um tanto desse tema no referido texto, é razoável que a ele voltemos aqui.
Nos estudos herméticos, particularmente a partir da Segunda Câmara, começamos a abordar e a aprofundar o estudo do Universo desde a perspectiva do olhar e do comportamento pessoal, para o qual convergem todas as coisas, seres e eventos observados, pelo qual tudo o que é vivenciado como "experiência" ganha sentidos relativos e flexíveis. Isso ocorre devido à atuação das crenças e dos códigos de conduta, os quais representam maneiras a partir das quais a pessoa compreende, interpreta, observa, racionaliza e vivencia a realidade em que está. A crença denota a forte convicção pessoal na existência de algo; é o conjunto subjetivo de elementos significativos que elaboram as impressões de realidade.
Assim, qualquer objeto e ideia acreditada existe mentalmente no seio da força simbólica da crença, o que, portanto, gera progressivas e mutáveis realidades de mundo. Nesse processo, os códigos de conduta têm relevância nuclear, pois, como crenças na realização "adequada" ou "correta" desta ou daquela ação, em consonância com modelos previamente ditados pela sociedade, induzem o indivíduo a fazer para si o que, a rigor, é feito para outrem. Por isso é que até mesmo eventos simples e comuns como "cumprimentar alguém" ou "almoçar em determinado horário", geralmente são expressões intersubjetivas de crenças sociais generalizadas, pelo comportamento repetido e endossado.
Haja vista que as ações humanas, quando vista à luz do comportamento, são, basicamente, meras expressões de códigos de conduta, reforçados em mútuo acordo pela coletividade, não são naturais em si; não dependem apenas da espontaneidade sistêmica do organismo biológico de cada um. Dependem, por outro lado, das normas e impressões de "retidão" comportamental que o "outro" impõe a cada pessoa, de maneira que são elaboradas progressivamente conforme o contexto cultural e também conforme as intencionalidades estratégicas da pessoa. Isso significa dizer que o indivíduo, enquanto ser histórico, geográfico e social, não expõe a seu bel-prazer a naturalidade e a plenitude dos seus desejos. Pelo contrário, em geral, os bloqueia diretamente, amiúde pelo temor de não ser aceito e não ser aprovado pelo outro, logo, pelo olhar inquisidor e crítico das diversas crenças no "valor da retidão" impostas socialmente, desde tenra idade. Basicamente por isso, a pessoa se vê constrangida pelos códigos comportamentais, ao mesmo tempo em que os valoriza localmente, a fim de realizar seus aparentes intentos, quando, na verdade, quase sempre, são os desejos alheios os a serem individualmente realizados.
Logo, indiretamente ou não, a cultura dita as "normas de conduta" a serem respeitadas, seguidas e, muitas vezes, até mesmo "temidas", sob medo de o indivíduo não se firmar na posição social que almeja. Essa questão, portanto, traz à tona a problemática do convívio em sociedade, cujos modelos de realidade, vinculados a um sem número de "regras", devem ser realizados. Essa realização, quando em consonância com tais modelos, é o motor intersubjetivo fundamental a partir do qual o sentido de "normalidade comportamental" se assenta. Ora, como a maioria dos indivíduos está intensamente impregnada de códigos e mais códigos de conduta, é lógico concluirmos que cada pessoa raramente pensa por si. Pensa, então, não apenas no outro, mas pelo outro e para o outro. Isso nada mais é do que mera "fantasia pessoal", porque, a rigor, o outro apresenta níveis de percepção, compreensão e sensação distintos. Logo, o outro é o outro; não há coincidência efetiva entre as percepções.
Na medida em que o outro, por exemplo, é visto como "autoridade", apenas reforça ocultamente, por parte daquele que ouve/lê, um discurso ideológico de "superioridade", o qual, porém, é meramente condicionado por expectativas intelectuais diante de determinada gama de conhecimentos. Essa fantasia, condicionada pelo saber cultural de dada época e local, sustentada pelas expectativas pessoais, tende a indiretamente gerar frustrações intensas, quando não corresponde ao que o outro faz no cotidiano. É a tendência de a mente projetar em outrem aquilo que lhe falta e aquilo que considera "correto", "a ser seguido". Ora, isso denota, como dissemos, mera "fantasia"; a rigor, o outro apresenta níveis de percepção, compreensão e sensação distintos. O "inception" normativo-comportamental ao qual as pessoas são progressivamente submetidas é a força simbólica maior dos acordos interpessoais e, mais grave ainda, dos "limites" da racionalidade do comportamento e da razão.
Isto posto, é claro observarmos que a pessoa jamais age plenamente em prol dos seus múltiplos e caóticos desejos, pelo divino poder do querer. À medida em que é exposta à educação, à orientação e à instrução, é moldada culturalmente, de modo a realizar aquilo que dela o outro espera. Por isso, cada indivíduo nunca está psicologicamente "só", mas sim cercado de diversas crenças, as quais internaliza, o que, aos poucos, forma a sua personalidade, a qual, então, não é propriamente "personativa" e "individual", mas um conjunto individual flexível de crenças e expectativas. Isso, porém, não invalida a experiência individual e intransferível, porque cada pessoa é um universo subjetivo que sente por si e para si, apesar de querer comunicar isso ao outro, geralmente a serviço dele. Nisso, reside, entre outras coisas, a problemática das expectativas de aparência e função em relação a cada pessoa. Em outras palavras, gera a sensação geral segundo a qual as pessoas devem se comportar de acordo com seus perfis comportamentais, os quais, porém, já são previamente acordados pelas normas de conduta social. Ou seja, não existe perfil pessoal comportamental em si.
Pelo exposto, não é difícil concluirmos que amiúde o que esperamos de alguém é exatamente aquilo que esperamos em relação aos modelos comportamentais idealizados pela sociedade, motivo pelo qual, a rigor, o classificar e o julgar o outro é, no máximo, uma reprodução social de convenções normativas e estéticas. Não é absolutamente possível que tenhamos acesso real a quem quer que seja, pois nossa suposta interferência na conduta de outrem é fruto de nossas impressões comportamentais internalizadas como "adequadas" ou "corretas", em contraposição às que tomamos por "inadequadas" ou "incorretas". Classificar e julgar alguém não é um exercício natural e genuíno da racionalidade, mas sim a projeção pessoal de ocultas crenças no "valor pessoal".
No meio místico-filosófico, não é diferente. Nele, as imposições pelas crenças de cada olhar são ainda preponderantes, o que paradoxalmente vai na contramão do que a essência do Misticismo quer: a reintegração cósmica e indiferenciada com o TODO. A quase totalidade dos estudantes e até mesmo dos que ensinam classificam e julgam a todo momento, mormente quando contrariados em seus pretensos "valores éticos e morais". Isso explica a espantosa quantidade de contendas e mesquinharias no seio dos grupos esotéricos, não importando a Ordem, confraria e a linha de abordagem mística. A maioria está muito mais preocupada em ver e manter no seu âmbito aqueles que a bem consideram e seguem exatamente os ensinamentos desta ou daquela doutrina do que em reconhecer e aceitar a diversidade perceptiva e opinativa de cada um. Quando, diante de uma pessoa que, principiante ou avançada nos estudos místicos, percebe algo que contraria a visão doutrinária do "líder", ele geralmente a repudia por isso, até mesmo tenderá a difamá-la alijá-la do seu grupo. Isso é mais comum do que se imagina.
Mas, perante essa situação, o que, de fato, ocorre? Na realidade, o que acontece é que a doutrina mística internalizada passa a ser mais importante do que a racionalidade e a lucidez individual, logo, trata-se da eclosão de dogmas no indivíduo, embora, com frequência, negue isso. Em face do exposto, na área dos estudos místico-filosóficos, podemos didaticamente organizar o indivíduo em quatro dimensões, relacionadas entre si: i) Pessoal; ii) Profissional; iii) Estudantil; iv) Instrucional. Lembramos que essa divisão não é natural, nem "exata", mas apenas uma formas pela qual podemos compreender melhor as complexas e intensas ações comportamentais no âmbito da instrução esotérica.
A "dimensão pessoal" é, como o próprio nome diz, aquela que responde pelos desejos e comportamentos frequentes e espontâneos da pessoa, isso inclui, por exemplo, suas inclinações estéticas, espirituais, passionais; suas percepções existenciais, etc. O nível pessoal da imagem do indivíduo, apesar de não ser absolutamente natural, devido às crenças e aos condicionamentos culturais aos quais se expõe, é deveras intenso e significativo, pois representa o cotidiano circunstancial de cada um (relações em família, hábitos gerais, etc.). Quanto à "dimensão profissional", em geral, obedece a modelos de conduta formal esperados em cada área de atuação da pessoa, o que, mesmo não sendo efetivamente "fixo", porquanto as profissões são dinâmicas em suas formas de expressão, ainda é muito relevante para que cada área profissional se apresente em suas características e deontologia. Por isso, os comportamentos "éticos" são desejados e reforçados. Isso torna as interações profissionais complexas, mas, ao mesmo tempo, é localmente relevante para que cada profissional realize as funções para as quais está designado ou ele mesmo se designa.
Evidentemente, tudo isso é uma rede de códigos comportamentais socialmente imposta, não obstante, é uma condição, , "sine qua non" para a coesão dinâmica das profissões em geral, notoriamente no modelo econômico das relações capitalistas. Nesse âmbito, o lado meramente "pessoal" do trabalhador fica, em geral, relegado ao segundo plano, em prol das formalidades da importâncias da realização funcional de cada tarefa. A "dimensão estudantil" é aquela representada pelo comportamento pessoal de estudar e aprender algo. Como modelo clássico, temos as "salas de aula", em que os professores devem ensinar aos alunos. Isso os coloca num contrato social no interior do qual um das partes é assimetricamente mais bem considerada (os docentes), haja vista sua alegada sapiência em relação ao conteúdo ensinado. Mas ambas as partes aprendem sempre, pois a Mente está em frenética busca do conhecimento e de vivências diferentes.
Podemos afirmar que todas as pessoas, independentemente de suas origens sociais, são estudantes. Como seres racionais, desejam e estabelecem diversas metas pessoais, motivo pelo qual o aprender a como realizá-las se faz sempre presente. Quando à "dimensão instrucional", trata-se justamente daquela em que o indivíduo se propõe a ensinar e o faz, no caso da presente exposição, no âmbito místico-filosófico. Essa dimensão é culturalmente forte demais devido às intensas expectativas comportamentais de "notório saber" e "retidão pessoal" em relação ao Instrutor. Logo, espera-se dele não apenas transmitir conhecimentos, mas também atitudes "corretas" diante dos seus discípulos, no seu contexto de estudos e até mesmo no dia a dia.
Nesse sentido, o valor de um Instrutor místico estão diretamente relacionado às suas ações, as quais, se em consonância com os seus dizeres e com o que se espera comportamentalmente dele, ganham força e se mantêm "coerentes" consigo. Nisso, o percurso histórico-biográfico do Instrutor desempenha um papel fundamental, na medida em que, quanto mais anos de experiência tem, mais socialmente é bem considerado e, em alguns casos, até mesmo "venerado". Ora, mas ocorre que tudo isso que acabamos de expor, tanto nas dimensões "pessoal", "profissional", "estudantil" quanto na "instrucional", são, a rigor, meras projeções de expectativas ideológicas, advindas de olhares mergulhados na fantasia da "retidão", da "importância" e da "superioridade" dos valores de conduta.
É claro que muitos insurgir-se-ão contra a afirmação imediatamente anterior, dizendo que os "valores de conduta" são "reais" e "objetivos". Mas, na verdade, não são. Todas as relações interpessoais em sociedade existem em função de miríades de "acordos firmados ou quebrados" diante de modelos comportamentais idealizados e repetidos. Até mesmo a instrução mística não deve ser encarada como "algo puro e superior", mas sim como um relevante meio pelo qual o Instrutor auxilia o desenvolvimento espiritual de seu discípulo, mas em conformidade com modelos contextuais de observação, compreensão, interpretação e vivências de mundo, os quais, como sabemos, variam demais entre si. Embora a Verdade seja UMa só, é mentalmente percebida em inúmeras "partes" e as doutrinas representam elaborações elegantes de como as pessoas analisam e interpretam as realidades em que contextualmente estão.
Uma vez que cada pessoa é um mundo subjetivo próprio, porém, culturalmente condicionado pelo cruzamento instável do olhar e do julgar das crenças, não deve ser vista somente a partir deste ou daquele aspecto, cuja validade, aliás, varia conforme o modelo de expectativa comportamental adotado. Assim, não existe um "Instrutor de fato", "independente de seu cotidiano pessoal ou profissional", da mesma forma que não existe um estudante "independente de seus hábitos informais". O que existe é uma rede interpessoal de complexos entrelaçamentos de conduta, para os quais a "ética" e a "moral" pretensamente reservam lugares "fixos" e "determinados".
O Universo é Mental, portanto, tudo é ilusão. Ninguém "tem que ser assim ou assado"; ninguém "tem que fazer isso" porque uma doutrina ou um líder místico "afirma". As pessoas, por exemplo, quando não realizam a conduta esperada dentro de contextos de estudo, são imediatamente "classificadas, julgadas e condenadas" como "isso ou aquilo". Contudo, essa classificação e esse julgamento não vêm do outro, mas sim das crenças nas condutas "certas" que ele sustenta. Cada um pode fazer o que quiser, mas sabendo que, devido aos códigos sociais, determinada ordem local de é esperada. Não existe nada "errado", nem "certo". Os eventos simplesmente acontecem e, aliás, o Universo é indiferente às nossas crenças; o Poder Superior não nos julga, nem nos considera "impuros" e "errados". São as ideologias passageiras que rotulam, condenam e afastam, pelo medo egoísta de perderem a fantasia de sua validade diante daqueles que as seguem.