JOSÉ LAÉRCIO DO EGITO — F.R.C.
Tema 1711
2005 - 3358
"Nada existe de permanente, a não ser a mudança."
— Heráclito.
Um dos pontos extremamente delicados citados pelo Hermetismo e por algumas outras doutrinas, incluindo o xamanismo de Dom Juan, baseia-se no fato de que a vivência daquilo que consideramos uma realidade, com certo não é mais do que uma ilusão implícita no enunciado do Primeiro Princípio Hermético: O Universo é Mental. Isso tem sérias implicações, a começar, as pessoas – seres – são meras projeções do Ser – único.
Como a Mente não pode sacar todo o conteúdo da existência, ela o faz em fragmentos, o mesmo acontecendo com relação ao perceber o Ser, ela não pode concebê-lo como totalidade, então o fraciona constituindo os seres, meras frações do Ser. Em outras palavras, a Mente estabelece uma descontinuidade aparente em tudo incluindo no próprioSer. As descontinuidades, embora sejam projeções – hologramas – dele, ainda assim cada fração uma de suas frações se comporta como se realmente existisse independentemente, e é isso o que alimenta a ilusão da individualidade, gerando mecanismo de defesa dessa individualidade, mediante as defesas do ego. O ego só existe nos seres, e tudo isso integra a ilusão do existir fora do “É” . O ser adquire uma personalidade – individualidade – a ilusão de que é distinto dos demais, não percebendo que todos os seres são hologramas gerados a partir do Ser Uno.
Existe um provérbio que diz: O rio teme o oceano. Isso representa uma verdade, algo tende a temer ser absorvido por outro, o rio teme ser absorvido pelo oceano tal como o ser teme ser absorvido pela Consciência, a ilusão do existir como individualidade ser desfeita “É”. O ser, por acreditar existir unitariamente, não suporta sequer a idéia de desfazer as condições que o tornam separado do Ser. Para melhor usar no caso dos seres a analogia do rio e do oceano ela deve ser modificada; em vez de um rio deve ser considerado uma corrente marinha [1], algo que não vem de fora e sim que flui no interior do próprio oceano.
Como não há descontinuidade verdadeira, as descontinuidades ocorrem como percepções limitadas no próprio “É”, os seres percebem-se como unidades separadas, mas eles são apenas delimitações do próprio Ser – percepções parciais ditadas pela Mente –, ou seja, não estão fora dele. A partir do que foi discutido, temos que considerar que tudo o que se diga e ensine a respeito de desenvolvimento, de transformações, de evolução do ser não tem consistência real, são discursos em torno de uma ilusão, mas que é válido como meio do ser lidar com a ilusão. O poder de separação é tamanho que faz com que a pessoa lute de modo ferrenho para manter o sentido de separatividade. Isso pode ser sentido em todos os momentos.
Na descrição das Câmaras de Desenvolvimento Espiritual falamos do Terror da Nona Câmara, resultante do ser sentir que está se direcionando para o Ser, o que evidentemente implica em perder a individualidade, o se fundir em uma trindade, um passo no caminho da unicidade. Um passo na volta do ser ao estado de Ser. Assim como o rio teme voltar ao oceano – ser absorvido por ele – também os seres temem ser absorvidos pelo Ser e é a partir da Nona Câmara que isso se delineia. Como vimos no estudo da Nona Câmara, o temor de perder a individualidade é de tal monta que os seres preferem voltar às câmaras inferiores, reiniciar sucessivas vezes a caminhada no reino da ilusão, volta ao mundo das borboletas.
Os xamães vêem o ser como uma bola luminosa que reflete apenas uma concentração de limites estabelecidos, mas que mesmo assim constitui o aprisionamento dos seres. Um ser normalmente é um prisioneiro de miríades de condições por ele mesmo criadas e que, em verdade, são ilusões. A saída da dependência desses fatores limitantes equivale a uma libertação do “casulo” característico da vida de confinamento ao mundo que conhecemos. Sair do casulo é a libertação da 12ª Câmara, tal como ensinada pelo Hermetismo milenar. O “casulo” que aprisiona o ser é delimitado pelas percepções, pela fixação do ponto de acessamento da mente sobre a Consciência. Mover a agulha para outros pontos equivale a tornar o ser livre daquele ponto em que está aprisionado. Assim ele poder flutuar sem amarras. É deveras peculiar o temer sair do casulo, mas isso só acontece porque a condição de limitação imposta pela mente faz com que a existência fora do casulo seja posta em dúvida.
Tudo o que dissemos nesta palestra, podemos usar a analogia do disco e da agulha, da Mente com a Consciência. Assim podemos dizer: A agulha teme permitir que aquilo que foi sacado por ela volte ao disco. Na verdade tal não significaria uma extinção e sim um existir em um outro estado. A agulha saca tantas vezes for conduzida aquele ponto, as passagens não apagam o registro. A agulha teme deixar de existir por não ser mais necessária, mas isso não quer dizer que aquilo que ela “trouxe” haja se extinguido. O disco é eterno assim como tudo o que nele estiver gravado, portanto não tem limite o número de vezes de acessamento. Os seres são meras delimitações na Consciência – O Ser. Ali ele permanece eternamente, o que permite poder voltar. O rio teme voltar para o mar, mas quando volta teme voltar a ser rio. Os seres temem a se sentirem como Ser, mas como tal ele teme voltar à condição de ser.
A morte física não desfaz o casulo, ele continua por incontável número de anos, somente quando o ser supera o Terror da Nona Câmara é que ele ascende, e mais adiante dá aquela gargalhada de si mesmo, ao sentir que todas as câmaras foram ilusões, nada daquilo seria preciso. São condições ditadas pela preservação do ego. Individualidade só existe abaixo da Nona Câmara, e só há encarnação nesse nível, não há como algo real, apenas como uma ilusão. Porém, vale considerar que mesmo sendo uma ilusão aquilo tem que ser vivenciado, pois não é a simples negação que liberta. Não adianta dizer: isso não é real. Quando se está preso a uma ilusão, preso ao casulo, o ser cria ilusões e mais ilusões, pois aquilo é real pra ela. Somente quando o casulo é rebentado é que ocorre a libertação, ou seja, na analogia, implica a deixar de ser rio para ser oceano.
As doutrinas ensinam como a pessoa conviver com as ilusões até chegar o momento de ela sentir que nada disso acontece como verdade, mesmo assim elas ensinam, pois tem que ser assim porque uma pessoa só se liberta da ilusão pela ilusão. O importante é como uma pessoa percebe o mundo, mesmo que este seja uma criação sua. Criar um mundo é criar um casulo, vezes um casulo dentro de outro. Já que não é possível a todos os seres se libertarem do casulo que o prende, então ao menos vale aprender a convier como prisioneiro até que um dia venha a libertação.
Dom Juan diz: “A águia devora a consciência”. Ela não devora a consciência como um todo, mas apenas aquela manifestação que caracteriza a ilusão da ilusão em multiplicidade, mas como aquela aparência – consciência de si mesmo – que cada um atribui a si mesmo. Isso não acontece ao termino de cada estágio – encarnação – neste plano, mas quando o casulo é definitivamente desfeito.
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[1] Correntes marinhas são correntes estabelecidas no seio do próprio oceano, rios dentro do próprio oceano.