O Mito do Lago

                                                                                JOSÉ LAÉRCIO DO EGITO  F.R.C.

Tema 73
1975 - 3328.

"A razão sempre acaba por ter razão."
— J.-B. le Ronde d’Alembert.

Em um recanto isolado de um planeta existia um povo, cuja civilização era basicamente perfeita. Era um povo de grande sapiência, e, naquele mundo, todos os seres seguiam em obediência à orientação de um Senhor Supremo, justo, sábio e pleno de amor.

Embora constituíssem uma civilização ideal, mesmo assim os seres traziam viva a chama do conhecimento, tinham grande desejo de saber, de ter conhecimento objetivo do mundo que os cercava.

Certa vez, o GRANDE SER, Senhor Supremo daquele povo, idealizou e criou um lindo lago, um lago imenso, misterioso e profundo. Os seres podiam usufruir o lago, mas logo ficou claro que isso não lhes bastava. Eles se sentiram impelidos pela curiosidade a conhecer tudo a respeito do lago, a conhecê-lo em profundidade, e a examinar as leis que operavam em seu interior. Assim, aquele lago deixou de ser-lhes tão maravilhoso; passou a ser, de certa forma, causa de sofrimentos, em decorrência do “querer conhecer”. O desejo de conhecer tudo a respeito do lago sobrepunha-se aos prazeres que ele podia proporcionar. Nasceu o sofrimento, pela curiosidade do querer conhecer. Os seres quiseram não somente saber sobre a natureza do lago, mas, especialmente, conhecê-lo em sua plenitude. Para tanto, precisavam explorá-lo em todos os sentidos possíveis, precisavam examinar tudo objetivamente, conhecer todos os detalhes, testar as leis físicas, analisar tudo de modo objetivo, sensorialmente. O saber subjetivo não lhes era bastante para que houvesse quietude em suas mentes.

Certa vez, os seres tiveram uma ideia: fariam uma exploração ao fundo do lago para conhecer‑lhe as profundezas. Decidiram fazer uma expedição muita bem organizada, e, para tanto, se prepararam da forma a mais adequada possível. De início, os seres sabiam que o interior do lago era um ambiente hostil, em decorrência das grandes diferenças existentes entre o lago e o ambiente exterior.

Para que a missão não fracassasse, normas de segurança foram estabelecidas, a fim de que as criaturas não sofressem danos, em decorrência da ação das leis naturais, inerentes ao mundo onde penetrariam. Também foram devidamente instruídos para se precaverem de inúmeras situações e influências, que possivelmente iriam encontrar durante a missão.

Visando a consecução de uma missão segura, haveria equipes em bases de apoio para prestarem auxílios e orientações que se fizessem necessárias para o melhor cumprimento da missão, assim os seres no lago deveriam se manter em contato com as bases de apoio, de onde receberiam instruções e suprimentos precisos.

De início ficou estabelecido que os seres devessem usar uma espécie de escafandro, pois o meio líquido não lhes era próprio, desde que normalmente viviam em meio bem diverso.

Como algo imprescindível, cada ser deveria ter cuidados especiais com o seu escafandro, do contrário a missão, por certo, fracassaria.

Periodicamente, sempre que fosse necessário, o escafandro iria sendo substituído, a fim de garantir uma adequada proteção ao ocupante. Daí cada ser, durante o longo período de missão, teria que substituir muitas vezes suas vestimentas protetoras.

A partida foi um momento de glória, pois os seres iriam mitigar a sede de conhecimento de tudo aquilo que pudesse existir no lago. Mas a euforia foi logo sendo substituída pela tristeza, na medida em que os seres mergulhavam para os profundos abismos do lago, saindo do mundo da luz para um mundo em que reinavam as trevas do abismo.

Logo de início, ficou bem claro que a expedição seria bastante demorada, pois havia coisas e mais coisas para serem conhecidas, leis e mais leis para serem vivenciadas.

Iniciada a missão nas profundezas, não demorou que os seres sentissem a necessidade de uma divisão de trabalho, assim grupos foram formados, visando cada um determinado tipo de exploração, a conscientização objetiva de determinados ângulos, para no final somarem as experiências individuais. Com a divisão em grupos, houve diversificações das funções. Isto acarretou a necessidade de movimentos mais livres para certos indivíduos. A missão envolvia a necessidade de muitas decisões pessoais, por isto certa autonomia — livre arbítrio — teve que existir entre os seres e as bases. Assim houve a concessão de certo grau de livre arbítrio.

Ante a necessidade da execução de diferentes funções, a base passou a enviar escafandros especiais e adequados às diversas atividades, especialmente adaptados às necessidades próprias de cada grupo. Assim foram surgindo modificações, de conformidade com as necessidades. Se, por um lado, era importante a adaptação de diversos tipos de “vestimentas”, por outro lado também isso acarretou transtornos. Muitas “vestes” reduziam muito o nível de comunicação com a base, e até mesmo a comunicação entre os grupos, e mesmo entre as espécies.

Assim já não era possível um intercâmbio fácil de idéias entre os seres, especialmente entre os seres de grupos (linhagens) diferentes. Daí foi um passo para que ocorressem desentendimentos entre as linhagens, chegando mesmo umas a destruírem outras, para que indivíduos destruíssem outros, e assim muitos grupos procuraram viver isolados, como meio de evitarem agressões, ou como forma de sobrevivência física, não só indivíduos como também grupos.

Enquanto a exploração desenvolvida por algumas linhagens transcorria naturalmente, seguindo aquilo que fora programado, verificou-se que os grupos que dispunham de mais autonomia de movimentos, e consequentemente de decisões próprias, em decorrência da relativa independência do mundo exterior, começaram a negligenciar as normas de segurança, e assim passaram a cometer muitos erros. Se, por um lado, o livre arbítrio proporcionava-lhes uma maior capacidade de ação, por outro dava margem a que negligências fossem cometidas, e, como consequência, em virtude das leis físicas serem imutáveis e invioláveis, quando estas passaram a ser infringidas, inúmeros problemas surgiram, criando em consequência problemas os mais diversos possíveis para os infratores.

Isolados do mundo exterior por bastante tempo, muitos “exploradores” começaram a esquecer a sua própria origem, e assim foram sentindo necessidade de poderes individuais, a necessidade de liderança visando fins pessoais, já que haviam esquecido conscientemente a finalidade de suas presenças naquele mundo hostil. Procuraram tirar o máximo proveito do mundo artificial em que viviam, por haverem esquecido que havia um mundo muito maior e mais perfeito aguardando-os no regresso.

Houve, então, lutas e oposições. As linhagens se dividiram em subgrupos, houve o “cada um por si”, e assim nasceu o sentimento de individualidade egoísta — o ego.

O mais grave foi que a missão foi sendo esquecida por parte de muitos, e o pior ainda é que os seres foram se tornando totalmente esquecidos de importância de se comunicarem com a base, perdendo assim o conhecimento da maneira como deveriam agir para regressarem um dia.

A infração das leis gerou sofrimentos e dores. Estavam pagando com o sofrimento o preço do fruto da árvore do conhecimento. Diante dos sofrimentos, aqueles seres começaram a clamar por algo melhor, pressentindo que deveria haver um mundo mais fácil de existir. Traziam alguns indícios de reminiscências registradas em seu íntimo, e aqueles que assim sentiam começaram a agir, visando o restabelecimento de contatos com as bases. Sentiam dentro de si algo muito tênue, reminiscências de algum lugar em um tempo distante, saudades de uma felicidade perdida.

Os sofrimentos aumentaram, a dor se avolumou, e teve início a grande revolta, o grande clamor. Os mais revoltados começaram a proferir impropérios àqueles que falavam de um Chefe da Hierarquia que, segundo a tradição, fora o responsável pela criação do lago.

Assim acabaram por criar um ambiente estruturado em falsos valores, e, para garantirem aqueles falsos valores, adotaram um sistema de tudo negar. Criaram-se códigos, leis e regulamentos próprios, muitos deles essencialmente perversos, em que a existência de um mundo exterior passou a ser negada sistematicamente, pela afirmativa de que o mundo do abismo em que viviam era único.

Os grupos lutaram entre si, uns querendo sempre sobrepujar os outros, e, dentro de cada grupo, um querendo sufocar o outro. Enquanto isto, no mundo de origem, lamentava-se aquela situação, porém, malgrado os clamores, a base continuava envidando esforços para aliviar os infelizes habitantes do abismo, para os quais ela enviava orientações, mas que, na maioria das vezes, não eram sequer escutadas, pois os seres, não crendo em outro mundo além daquele, não davam ouvidos às orientações indispensáveis para o regresso. Aqueles seres infelizes continuaram a ser orientados para um necessário regresso, mas, mesmo assim, os seres continuaram impassíveis em seus erros.

Sabia-se que o livre arbítrio necessário para parte da missão fora responsável pela balbúrdia, e que as condições ambientais daquele mundo hostil ante as naturezas próprias dos seres determinavam distúrbios graves. Trazê-los todos de uma só vez era impossível, pois, para o regresso, fazia-se necessária a colaboração dos seres, e estes não queriam colaborar, por não mais acreditarem sequer na existência de alguma base. Mesmo assim, a base continuava a auxiliá-los, atendendo grande parte das necessidades dos seres, tais como alimentação e oxigênio para a respiração, além de orientações sobre como subsistirem o tempo necessário, até encontrarem os meios de dirigirem os seus barcos de regresso ao mundo de onde um dia partiram. A base nunca deixava de remeter novos escafandros para substituírem os danificados. O mundo exterior, a cada momento, enviava mensagens orientadoras, quando não mensageiros, mas lamentavelmente estes não eram levados a sério, e suas mensagens perdiam-se em grande parte, porque os seres julgavam-nas destituídas de finalidades precisas.

Mas, pouco a pouco, alguns, diante dos sofrimentos intensos, começaram a duvidar que aquele fosse o único mundo, e, a partir daí, iniciaram a busca de alguma forma de regresso. Somente estes davam ouvidos às informações recebidas e acatavam os ensinamentos.

Em algumas ocasiões apareciam naves estranhas, que alguns dos seres julgavam provir do tal mundo de origem, quando na realidade elas eram simplesmente ocupadas por seres igualmente falidos, vindos de outras partes do próprio lago. Muitos daqueles seres, oriundos de outros pontos, evidentemente, eram mais avançados em alguns pontos da vida aquática. Eram mais desenvolvidos, enquanto outros eram bem mais atrasados em muitos aspectos. Alguns dos visitantes se diziam emissários da verdade, emissários do verdadeiro mundo exterior, do mundo de origem, mas, na realidade, eram desgarrados, eram seres que também haviam perdido a capacidade de regresso. O fato de dominarem uma técnica de viagem de um ponto afastado do lago para outro não lhes conferia, porém, o direito de se julgarem perfeitos, e de saberem a maneira de regressar.

Assim a missão parecia um fracasso. Na realidade ela não fracassara, pois tudo aquilo representava condições inerentes à vida no lago, que eles tanto almejaram saber, ação das leis existentes no lago, a vulnerabilidade dos seres ante as condições do lago. Afinal, eles quiseram saber tudo sobre o lago, e os fracassos também eram condições impostas pelo lago, pois afinal o conhecimento absoluto do lago não envolvia apenas o seu lado bom. Todas as coisas têm um oposto, e, sendo assim, mesmo o drama de muitos e muitos seres, na realidade, também foi conhecimento adquirido sobre o mundo para onde vieram, a fim de dominarem tudo, de saberem tudo.